terça-feira, 14 de setembro de 2010

Penumbra

Despertei num quarto incógnito por cima de um lençol de algodão branco e húmido. A boca seca, as entranhas a exalar o resto do vinho de uma noite festiva. O som da ventoinha a balançar no tecto, cortando o ar, levantando uma brisa de vento e um cheiro sujo e bolorento que se desprega das ombreiras negras. Vagamente cansado, sinto-me vagamente vivo. Os olhos, duas rodelas de ferro enferrujadas e entumecidas, piscavam, entravam na realidade e despediam-se em sonhos. A noite escura, o corpo dormente, o quarto quente, a janela ao luar e a áspera sensação do fim da festa a revolver-me e a balançar-me nas carícias da cama macia. Passaram-se minutos inteiros e prolongados na companhia majestosa do silêncio. O vinho ainda escorria pelas veias quando ouvi os primeiros sons. Chegavam nítidos. Um berro esfuziante que vem de um corredor que desconheço. Mas de quem. Estou preso à cama como um peso morto. Pergunto-me se é grito de agonia ou canto de festa. Os olhos piscam. Quando se abrem enfrento o silêncio. Quando retornam ao interior profundo, uma caixa de música. Será consequência do vinho, não sei, mas nestes momentos julgo pairar entre dois planetas que piscam, e em ambos me sinto desprovido de razão. Há pouco um berro, que talvez fosse apenas um canto, não sei, e agora mesmo uma explosão de conversas, vozes, gente do outro lado, num quarto e numa sala e numa outra sala e num corredor, não sei, porque não vejo, mas os sons chegam de diferentes recantos, por isso falo em quartos, porque dali as vozes são poucas, e de salas, porque nas traseiras há um remoinho em movimento. O tom é alegre: copos a esbarrar e uma música de fundo encantadora. Os olhos permanecem fechados. Gosto. Estou à porta de um planeta alegre, não vejo o porteiro, nem sequer a porta. É simplesmente uma penumbra.

Play it