sábado, 30 de maio de 2009

Pegadas

As pegadas de viajante contém a frescura de um outro ar. Em míudo sonhava poder voar. Primeiro no sentido literal, fantasiando a liberdade de um pássaro, mais tarde a possibilidade de poder partir dentro de uma máquina que consegue o improvável: voar! Mas em míudo sempre andei de carro e fui crescendo com o hábito dos pés no chão. Quando finalmente voei, quando comecei a desfrutar das minhas próprias asas, senti uma tremenda aflição de poder fazer parte dessa história improvável que é: voar! É que quando muito pensamos deixamos de poder sentir, e quando começamos a sentir na pele o que em tempos pensámos, constatamos que nem sempre existe uma irmandade. No final de cada etapa, mais do que uma pergunta ou frase que resuma o tempo que já passou, a alma do viajante sente a essência daquela pegada que experimenta no interior: um testemunho jubiloso e tranquilo ou uma garra afiada que lhe risca o estômago.

Tu

Regressei de viagem. Passei pela bucólica e civilizada Suíça e aterrei passados uns dias na fresca e sensual Berlim. Viajar tem este dom de nos dar a conhecer, não só o mundo exterior mas a forma como nos relacionamos com esse mundo, no nosso interior. Quando o vivemos a sós, sem família, sem filhos, sem horários... deparamo-nos com uma intensidade que vai para lá das imagens. É uma viagem de múltiplas viagens, é sentir que existe sempre um tu com quem nos relacionamos. Esse Tu pode ser apenas uma sombra que nos acompanha ou uma sombra que nos persegue; esse Tu posso ser eu, num diálogo de espírito, em dualidade; esse Tu podes ser tu que me lês; esse Tu pode ser um fio de imaginação, uma fábula de formas e pensamentos; ou o Tu que me segue com carinho; ou o Tu que liberta em mim o seu rancor, ou um Tu que em momentos gostaria que fosse o Eu... viajar é por isso também sentir que nunca estamos verdadeiramente sós.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Agora

Esta imagem não me pertence. Chega a ser estranho ter de reconhecer que na realidade não a cheguei a ver, não a captei, captou-a uma máquina sem eu me dar conta. Mas devo-a também ao desejo de expor o olhar à sorte, ao momento, ao ali e ao agora, para agora admirar-me como uma ínfima fracção de vida pode transportar um presente que nos deixa agradecidos e sorridentes. É bom poder partilhar este suave voar.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Viver no "Texas"

Muitas e muitas vezes perguntam-me como me sinto por viver numa terra que tem árvores em vez de prédios, que tem mar em vez de gente, que tem espaço em vez de trânsito... e que tem silêncio como música, gente simples como obreiros e a mera ambição de existir... sem mais.

Umas outras tantas vezes interrogam-me sobre as principais diferenças. Há muitas, mas a que me assalta aqui, de repente, é o número de dias que podemos admirar um pôr de Sol ao longo do ano. Porventura não há imagem mais banal, de tão habituados estarem os nossos olhos, de tão acostumados estarmos a esvaziar o que nos é dado e tomamos como adquirido, e no entanto jamais deixará de ser bela.

Viver no "Texas", para alguém que vira as costas ao flirt da cidade, é um processo de aprendisagem. Não se esvazia nas palavras. Ter o privilégio de poder optar, como eu tive, ensina-nos que cada espaço tem um sentir próprio, uma medida, uma razão que o conduz... não há mal nem bem... há sobretudo a cor do nosso olhar sobre aquela vida, sobre a nossa vida, e as razões que queremos ter para ali viver.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Red

Feira das Brunheiras, um palco vivo e aceso por montras de gente humilde que duas vezes por mês acampam num terreiro despido. Sobe a alvorada e despertam os olhos estremunhados, destapam-se as mantas, os ferros dobrados, as cordas, as vozes e os sacos que abrigam o sustento daquela gente saltitante. Cheira a café. Cheira a uma humidade adocicada que emana essências das redondezas, cheira a gente, sente-se a gente. Saltam cascas de tremoços para o chão ao sabor de uma mini, entre conversas de roulotte, berros familiares, pregões de vendedores que chamam os olhares passageiros ao encontro da sua horta, da sua pequena loja que vende um pouco de tudo por quase nada, e no meio do frenesim anónimo, onde reinam os tons da gente morena do sul, aquele ser vermelho, vindo não se adivinha de onde, entoa com uma cor vibrante o colorido do nosso mundo.

Um pastor na outra margem

Um olhar assim, capaz de destapar uma alma, deixa-nos despidos de palavras. Aconteceu-me. Cruzei-me com o pastor num dia de céu duvidoso, numa destas estradas recortadas do Alentejo a que muitos chamam perdido, mas que a mim me parece apenas escondido dos olhares mundanos. Tranquilo, sereno, discreto nos seus vales e curvas suaves, com uma paisagem linda e de lindas árvores, arbustos, flores de múltiplos tons e cores e cheiros e cheiros e cores e tons... e eu a passar de carro, brando, e ele ali, sentado junto à berma num ermo sombrio, sossegado. O carro seguia e os meus olhos permaneciam naquela imagem que se desprendia da paisagem. Travei, o carro e o tempo, para me juntar ao seu olhar cheio de um mundo denso que naquele momento se tornou meu.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O Mundo a Cores



“Houve um tempo em que as pessoas costumavam pintar as coisas que podiam ser vistas na Terra, as coisas para onde gostavam de olhar e que gostariam de ter visto. Agora, tornamos aparente a realidade das coisas visíveis e, ao fazê-lo, expressamos a crença de que, em relação ao mundo como um todo, a parte visível é apenas um exemplo isolado e que outras verdades se encontram latentes na maioria das coisas.”
Paul Klee

A capacidade de admirar para além do que se nos apresenta como real faz-me questionar sobre as dimensões que nos rodeiam. É claro, é evidente, é visível... por si só estes factos bastam, dirá uma maioria... e no entanto amamos sem atingir o porquê e continuamente olhamos e olhamos e olhamos sem nos encontramos de verdade com o que está para lá do visível. Porventura sem sequer nos questionarmos. Porventura sem permitirmos uma brecha. Porventura assumindo uma certeza ausente de uma experiência que foi negada. Mas o mundo é felizmente um mundo a cores, com tantas como as incertezas que carregamos... e sentir isso na pele... vibrar quando somos arrebatados por um olhar que trespassa a finitude do corpo... é tudo!


... Há quem veja de olhos fechados... O senhor Nobre estava ali sentado num profundo silêncio, com o olhar virado para dentro e uma expressão ausente de considerações. Discreto, como o tempo que passa sem aviso. Os olhos cerrados davam a entender uma conversa interior. Estava ali, e aquele ali devia trazer consigo um sabor quente e tranquilo.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Viagem

As imagens fotográficas têm este privilégio de fixar um momento que já passou, mais, permitem-nos recordar o olhar e apreender aquela fracção de segundo em que nos detivemos perante a corrente constante e imparável da vida. Uma imagem contém a energia da memória mas não se fica por aí, suscita emoções em todos os segundos que a admiramos, reflecte-se no nosso pensamento, provoca reacção, reúne no mesmo instante o passado, o presente e o futuro.

“No fim de contas, todo o movimento da vida humana é afectado pela forma e pela cor; tudo o que vemos, tocamos, pensamos e sentimos está a ele ligado, de modo que sempre que um artista pode usar estes elementos de maneira livre e criativa, ele pode exercer uma influência tremendamente poderosa na nossa vida.”

Ben Nicholson

O homem "...em certa altura da vida damo-nos conta de que a razão, a ciência e a moral têm o seu campo próprio na procura da verdade racional, do conhecimento científico e dos ordenamentos que a sociabilidade impõe, mas que isso nem de longe esgota o próprio homem. No mundo cultural em que vivemos não sei se é assumir uma grande coragem, se é ceder a uma grande fraqueza fazer esta confissão."

António Alçada Baptista

“Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao Sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os meus pés –
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma…”

Alberto Caeiro

Quando poiso o meu olhar e leio com doçura a vida, sinto que o desafio da nossa Viagem passa por tudo isto, pela forma e pela cor, pela liberdade, pela liberdade criativa, pela procura de uma verdade que nunca saberemos ao certo se existe, por existirem entre nós demasiadas verdades, pelo assumir com coragem a verdade que é a nossa, pelo eu que não muda mas se transforma, pelos meus e teus ouvidos atentos, pelo passado, pelo presente e pelo futuro... pelo assumir com uma clara simplicidade a alma de um viajante.